Archive for fevereiro \27\America/Sao_Paulo 2012

Torres García e Eliseu Vistonti na Pinacoteca

27 de fevereiro de 2012

Fui à Pinacoteca sábado ver a exposição do artista  uruguaio Joaquín Torres García. Em Montevideo,  havia ido ao museu e gostei demais.

Na Pinacoteca, estavam reunidas obras importantes que para mim, deslocadas de seu espaço, perderam um pouco o encanto.

É que o deslumbramento de ver Torres -García no Uruguai foi substituído por  curiosidade de saber mais para melhor compreender. Fiquei mais exigente, acho.

Porque aprofundar-se em Torres -García pode ser  difícil. É preciso estudar para compreender seus trabalhos no contexto de sua  particular visão de mundo e de si mesmo. E, por isso, ter o catálogo produzido para a exposição na Pitacoteca e para a que aconteceu em Porto Alegre na Fundação Iberê Camargo foi essencial.  O catálogo foi produzido por Alejandro Diaz e Jimena Perera, membros da direção do Museu Torres García.

Os trabalhos expostos na Pinacoteca apresentam  aspectos primitivos e básicos mesclados com sofisticações geométricas, deixando a impressão de que pode ser possível, para qualquer mortal,  exprimir  estranhamento diante do mundo em linhas, quaisquer linhas, escritas ou desenhadas. Porque Torres  García usa também  a palavra para complementar as colagens e desenhos. Suas capas de cadernos são lindas. Não sei por que, me lembrei da arte egípcia. Fiquei com vontade de produzir capas para meus cadernos.

Saindo da exposição, entrei na de Eliseu Visconti. Maravilhei-me.  Torres García me deu  sensação de que posso me expressar. Eliseu Visconti, não. Está totalmente separado de mim, seus trabalhos deslumbram, estão ali para serem absorvidos, admirados. Pude fotografar  (sem flash) e insiro algumas imagens  aqui.

Amazonas

23 de fevereiro de 2012

Passei uma semana no Amazonas agora no carnaval. Fazia tempo que queria conhecer a floresta. Primeiro, Manaus; depois, Anavilhanas.

Manaus é uma cidade interessante. Tem congestionamento, não é nada planejada, as construções parecem estão meio  amontoadas. Só que as pessoas são agradáveis,  a cidade vista do Rio Negro é linda, o encontro das águas é bonito e o teatro Amazonas é formoso demais. A cúpula colorida sobre a construção rosada encanta os olhos.

Na floresta,  fiquei no  Anavilhanas Jungle Lodge (www.anavilhanaslodge.com). Atendimento correto, adequado,  na medida certa. Passeios agradáveis, com alguma emoção (muito barco, muito rio). Apartamentos modernos, bonitos. Nunca pensei que tomar banho no Rio Negro fosse tão gostoso. Os guias são bacanas. E a comida é muito boa, sem temperos excessivos, variada e gostosa. Voltei bastante feliz. Voltaria muitas vezes para lá.

O escritor gago – Paula Fernandes

13 de fevereiro de 2012

Quase sempre a história começa devagar, pega fôlego, se apressa e chega ao fim. Gostaria de se demorar um pouco mais no meio do caminho, mas é como se descesse a ladeira, não consegue brecar.
Suas histórias terminam razoavelmente bem. São esperançosas, mostram uma luz no fim do túnel-como se diz por aí.
Para ele, qualquer fim de frase, falada ou escrita, cantada, é uma vitória.
As frases escritas são rápidas, percorrem a ideia sem  obstáculos.
E ele, ainda por cima, consegue viver de literatura.
Escreve um livro por ano. Publica um livro por ano.
Tem sido chamado para entrevistas,  debates. Recusa todos por um simples motivo: é gago.
É um sujeito bem apessoado -dizem por aí. Mas gago.
Então se esconde na escrita e se realiza na escrita. Tem horror a que conheçam  sua fraqueza. Em suas narrativas é soberano,  dono, regente, mestre, condutor, comandante, general.
Nunca  autografa seus livros. Não aparece. Dizem por aí que é um sujeito misterioso, um eremita. Não é nada disso. Ele só é gago.
Mora  sozinho em um apartamento. Acorda de manhã, faz café de coador, come cereais com frutas, lê o jornal e escreve até anoitecer. Almoça muito frugalmente, um sandwich.  Por isso  é tão magro.
À noite pede uma pizza, um sushi;  pede pelo telefone. Nessa hora toma uma cerveja.  Às vezes duas cervejas. E liga a televisão, assiste um monte de bobagens.
Não faz exercícios.
Quando o telefone toca, a secretária eletrônica atende. Depois ele retorna, se for importante.
Atualmente, escreve um romance sobre um paciente terminal, um homem que teve um derrame e parou de se comunicar.  A narradora é a mulher desse homem. Ela conta em detalhes os dias dele no hospital. Conta seus pensamentos, suas angústias, e, principalmente, seu tédio. O tédio de quem acompanha um doente por longo tempo no hospital e espera que ele morra, querendo, no entanto, que se recupere.
Ele gosta desse livro que escreve. Gosta demais. Gosta tanto que não quer  terminar. Quer deixar como uma frase não concluída, uma ideia  gaguejada.
Tem uma filha, que mora com a mãe, uma ex-quase-mulher. Grande figura (mas não foi o bastante). Parou no meio do caminho. Com ela – com a filha – ele não é gago. Ou gagueja  muito pouco. Às vezes.
Ele detesta Natal, e agora é época de Natal. Por isso está  nervoso, inquieto. Gostaria de dar algum frescor na vida dele, mas é impossível. É meu personagem mais relutante, verdadeiro. Ele vive em um mundo só dele, geralmente escuro.  Já  quis fazer com que ele levasse  a vida de um jeito mais leve, só que ele não tem energia para mudar.
Ele não tem depressão. Ele é gago, só isso, como o personagem de Mishima em O Pavilhão Dourado. Aquele personagem  sofre.
Ele não se identifica nem um pouco com o personagem de Mishima. Com Mishima, talvez um pouco. Mas nunca morreria como ele morreu, não faria um general de refém e  não cometeria haraquiri em seguida, para ser decapitado por um sabre empunhado por um jovem  que o venerava.
Uma coisa é ser gago em 1945  no Japão, outra é ser gago em 2011 em São Paulo, no Brasil: situações bem diferentes.
Não, ele ainda controla seus impulsos e tem limites. Se não fosse gago, seria um  publicitário bem sucedido, estaria aí ganhando dinheiro com campanhas de carros e cigarros, morando em um condomínio fechado e  seguro. Agora ele é escritor.
No dia 20 de dezembro , sai para  comprar o presente de Natal da filha. Sai cedo de casa, modificando totalmente sua rotina. Fica nervoso com isso.
Vai até uma loja de eletrônicos  bastante frequentada. Estaciona o carro, caminha até a loja, lotada. Ele está atordoado. Perdido no meio de games, computadores, músicas, telas. Anda por ali procurando ajuda, mas ninguém o socorre. Pensa em chamar um vendedor,  retrocede. Vai gaguejar e não terão paciência com ele. Ou o olharão com pena. As pessoas, quando vendem e compram, ficam muito ansiosas. Ele deveria ter comprado pela internet,  agora não dá tempo.
Escolhe o equipamento. Olha para o vendedor que, por uma coincidência extrema, está olhando pra ele naquele exato instante.
-E e e u que que quero le le var  esse.
O vendedor não hesita. Vai  para a caixa  formalizar o documento de venda. Ele o acompanha, mais calmo. Dali será  tudo mais fácil: levar o papel à caixa do segundo andar, pagar, pegar o computador no balcão, acompanhado da nota fiscal.
Faz  tudo isso mudo e, quando chega ao balcão, vê sua cantora preferida na fila. Linda,  fora do palco. É difícil um homem amar muito uma cantora. Sua voz limpa e clara  lhe dá  esperança de  que, um dia, falará  em linha reta.  E ela ali na frente dele  dá  vontade de desviar. Não quer  se decepcionar. Não quer  se desiludir. Quando a gente admira muito um artista e o encontra na vida real, pode se decepcionar. E, aí, o que faz com a admiração toda? Uma coisa é o que o artista  produz, outra o que ele é. Duas coisas diferentes.
Mas ele não precisa  se preocupar. É  só ignorar a cantora, que não o conhece. Ele não é conhecido e, mesmo que fosse, ela não saberia que era sua cantora preferida.
Mas acontece  algo ali, que o surpreende. Ela o encara. Ele disfarça. Ela o encara mais. Ele desvia o olhar. E ela pergunta:
-Você não é Anton Martins?
Ele nega.
-Desculpe, eu não gosto de invadir, mas você se parece muito com Anton Martins, meu escritor preferido.
Ele nega, com a cabeça, com os olhos. Chega a ser grosseiro. Melhor que ela continue  com uma boa lembrança dele, a lembrança dos retratos nas  orelhas dos livros, em que ele parece um escritor de best seller americano.
Ela fica muito sem graça e, tendo chegado sua vez de pegar a  compra, vira-se para o balcão, para  de olhá-lo. Pede  desculpas de novo, com a voz limpa e cristalina que o guia nos  momentos em que ele canta e deixa de ser gago, quando está sozinho.
Um pouco triste, vai  para casa escrever seu livro, trabalhar na história do paciente terminal.