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As memórias do Sr. Nabokov

24 de outubro de 2012

Tem vezes que a gente lê prosa e é como se lesse poesia. Não importa a história, a coerência do relato, importa o som que as palavras produzem no pensamento. E a gente imagina o que está sendo dito.
Isso aconteceu agora comigo quando folheava o livro de Nabokov, A pessoa em questão, da Companhia das Letras (1994). É mais ou menos uma autobiografia, sem compromisso de ser uma autobiografia. Em inglês, o título é Speak, memory. E é isso mesmo.
Quando a gente começa a lembrar o passado, surgem falas, penumbras, ventos, ondas emotivas. A certa altura, ele diz: “Confesso que não acredito muito no tempo. Gosto de dobrar meu tapete mágico, depois de usá-lo, de modo a superpor uma parte do desenho a outra. Os visitantes que tropecem” (p. 123). Ninguém tropeça. Pelo contrário. O leitor desliza devagar.
Encontrei, dentro do livro, uma resenha do próprio Nabokov de seu livro, publicada na Folha de São Paulo, no Mais, em 18 de abril de 1999. Ele fala das memórias como se escritas por outro, pelo Sr. Nabokov. É muito interessante. Diz, por exemplo: “Com a permissão do autor, menciono aqui um de meus contatos acidentais com sua família”. E também: “O Sr. Nabokov deve achar estranha essa rememoração das extravagâncias literárias dos anos de sua juventude”.
O jornal dentro do livro está amarelado, mas intacto.
Imaginei, imediatamente, meu querido sogro, Tomás, destacando a resenha do suplemento para encartá-la no livro de modo que eu a lesse mais de 12 anos depois, hoje, exatamente.
E assim as memórias de Nabokov encontraram as minhas.

Sobre “A vida de outra mulher”

29 de agosto de 2012

Ontem assisti “A vida de outra mulher”, com Juliette Binoche e  Mathieu Kassovitz , filme de  Sylvie Testud.  Juliette é uma de minhas atrizes preferidas. Ela sempre se transforma durante os filmes. Em Aproximação, de Amos Gitai, a personagem vai mudando, cresce, torna-se outra e a mesma. Em “A vida de outra mulher”  acontece algo parecido, mas só vemos a personagem antes e depois do ponto de virada. A história é mais ou menos assim: Marie se casa com Paul,  filho de um grande empreendedor, para quem passa a trabalhar, em sua organização.  Romance e  trabalho iniciam-se simultaneamente. Ele desenha quadrinhos. Ela torna-se importante executiva: rica, manipuladora, ambiciosa,  autoritária, chique. Nós não vemos isso, só sabemos que assim foi. O único momento em que podemos ter uma ideia de como ela ficou é por meio da televisão: uma entrevista em inglês que ela deu passa na tela. Ela acorda no dia de seu aniversário de 41 anos  sem nenhuma lembrança do que aconteceu depois de outro aniversário, 15 anos antes: dia em que ela começa o relacionamento com Paul. Ela acorda em um quarto que não reconhece, apaixonada, e ele  não corresponde. Percebe, aos poucos, que quinze anos de trabalho secaram sua vida e tudo em torno. O filme não discute, propriamente, as consequências de dedicação profissional extrema da mulher. Eu não senti assim. Discute experiência e memória. O que eu senti é que, por mais que mudemos, remanesce uma inocência que nos mobiliza. Em uma fase da vida em que tudo o que se quer é conquistar o espaço público, é duro  resistir.  Esforço pode ser feito para que a experiência não deixe de lado a leveza, a espontaneidade.  E, no fim, não escapamos muito de nós mesmos. É interessante como Marie se esquece de tudo e ainda assim pode avaliar relatórios complexos e seus números, integrando o passado que desconhece com  percepções  sobre si mesma identificadas com sensações da juventude. Ela pega o que a experiência tem de bom, junta com autenticidade e passa a ser uma pessoa inteira. Eu vi assim o filme, que permite, talvez, outras leituras.  Às vezes, perder a memória é conveniente.

Leituras dispersas

7 de abril de 2010

Leio vários livros ao mesmo tempo. A falta de método atrapalha a compreensão total dos textos e das histórias e a memória perde encadeamentos necessários para uma eventual narrativa.
Se eu fosse contar a alguém o que me lembro de Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas, diria que é a história de um escritor que tenta se esvaziar de si mesmo para encontrar um personagem possível. No enredo ele desaparece, mas eu compreendi que vai murchando, esvaziando, enquanto viaja.
E ainda parei no meio de Cidade Pequena, de Lawrence Block. Um escritor é suspeito de assassinato e aproveita essa situação para promover seu livro. Será isso? Deixei o livro de lado faz um tempo e olho de vez em quando com vontade de recuperar a escrita natural de Lawrence Block, mas acabo lendo outras coisas.
Li um livro sobre a construção virtual da memória, encontrei no aeroporto. Esqueci o nome. O autor diz que podemos passar todas as nossas experiências para meios digitais e, se soubermos arquivá-las com método, serão encontradas quando precisarmos. Achei interessante, mas deve ser chato ter essa preocupação o tempo inteiro. Outro dia deletei mensagens do celular e depois fiquei meio triste, e se eu quiser escrever minha autobiografia, as mensagens não seriam úteis? Aí pensei, mas por que eu iria escrever minha autobiografia? E aí pensei, mesmo as pessoas cujas personalidades não têm repercussão podem escrever sua autobiografia. Memórias são sempre memórias. É, mas é melhor lembrar de tudo de um jeito esfumaçado, sem apontar datas em linhas do tempo.
E ontem à noite li Drummond, A falta que ama, li e reli Elegia transitiva. “Onde habitas agora, onde saber tuas joias errantes?”.