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Dez livros de não ficção e um haicai

29 de dezembro de 2017

A  gente lê uma lista e já pensa na própria. Aqui está uma lista de livros de não ficção que estiveram comigo em 2017:

1)- Por amor a Freud: Memórias de minha análise com Sigmund Freud, de Hilda Doolitle (Zahar);

2)- Rotas Literárias de São Paulo, de Goimar Dantas (Senac);

3)- Django: The Life and Music of a Gipsy Legend, de Michael Pregni (Oxford University Press);

4)- Places, strange and quiet, de Wim Wenders (Hatje Cantz);

5)- Diários de Berlim: 1940-1945, de Marie Vassiltchikov (Boitempo);

6)- Duas vidas: Gertrude e Alice, de Janet Malcolm (Paz e Terra);

7)- 41 inícios falsos, de Janet Malcolm (Companhia das Letras);

8)- Freud com os escritores, de J.B.Pontalis e Edmundo Gómez Mango (Três Estrelas);

9)- O poeta e a foca, de Nanete Neves (Editora Pasavento);

10)- Manual de Editoração e Estilo, de Plinio Martins Filho (Editoras da Unicamp, Edusp, UFMG).

 

E tem  Lua de Outono (Escrituras), antologia e história do Grêmio Haicai Ipê, organizado por Teruko Oda. Fui ao lançamento na Japan House a convite de Danita Cotrim.

O livro é lindo, cada haicai termina seco, mas continua, as três linhas simples tornam-se todo um rio, só no haicai as palavras expressam de verdade aquilo que pode ser mais. Não consigo explicar.

 

Segue,  de Cristiane Kovacs Cardoso (p. 78):

 

Primavera

Tento acompanhar

loucos voos de andorinhas-

Ah, essa liberdade!

 

 

Um conto: 70 anos

10 de dezembro de 2017

           

barco

 

 

Caminho todos os dias no parque perto de casa, às vezes com o cachorro.

Irene morreu faz tempo. Nossos filhos, os dois médicos, como eu, trabalham muito. Ele é otorrino  e ela, cardiologista.

Vanda sempre quis tratar do coração dos outros. Eu disse várias vezes que ela nunca encontraria, nos corações, os sentimentos. Às vezes uma pessoa com arritmia poderia ser fria e calculista. Mas ela quis. E hoje está aí, esforçada, bem sucedida na profissão.

Casou-se com um dos primeiros pacientes e talvez eu tenha me enganado, ela encontrou muita emoção no rapaz. É um bom sujeito, mas não ficamos amigos. Ainda não entendi se ela e o marido se dão bem. Desconfio que não muito. Mas ela segura bem.

João Pedro logo quis ser otorrino para descobrir a cura da própria rinite. Eu avisei, não tem. Ele é feliz. Tem mulher bacana, dois filhos, gato e cachorro.

Meus filhos são felizes (Vanda menos). Gostam da medicina. Querem melhorar o mundo. Os dois se apresentam como médicos quando alguém passa mal no avião ou na fila do banco. São estudiosos, bem mais que eu.

Irene trabalhava comigo na clínica. Era minha secretária. Sempre foi, mesmo antes de nos casarmos. Ela sabia os nomes dos pacientes de cor, conhecia suas doenças; às vezes, quando eu não estava, por algum motivo,  receitava medicamentos. Falsificava a minha assinatura. Eu sempre deixei. Irene facilitava muito meu trabalho. Irene era doce, simpática, carinhosa, eu tinha certeza de que os pacientes voltavam por causa dela. Sempre foi assim. Namoramos durante quatro anos. Eu pedi a mão dela em casamento, nós nos casamos na igreja, tivemos filhos, fomos duas vezes à Europa e uma para os Estados Unidos. Fomos casados por 40 anos.

Irene teve  câncer. Eu estava com ela na UTI quando morreu. Eu fico com você, Irene. Se puder, morro com você.

Nem percebi quando ela morreu. Eu estava cochilando na cadeira ao lado, com minha mão no braço dela. Acordei e o braço estava frio. Não vi. Em meus anos de medicina nunca vi um paciente meu morrer. Vi morrerem em plantões, quando era novo. Paciente meu, não. Não acompanho os pacientes até esse momento, quando já estão com especialistas. Sou clínico geral. Nem Irene, minha mulher, eu vi morrer. O que é a morte? Eu não sei.

Continuei trabalhando, mas os pacientes não retornavam. A moça que coloquei no lugar de Irene era ríspida. E não me dava recados. Eu não suportava entrar no consultório e não encontrar Irene sorridente arquivando fichas, atendendo telefonemas com aquela voz radiante. Era hora de parar.

Mas fazer o quê?

Fui amadurecendo a ideia de que eu poderia voltar atrás, visitar minha cidade, a casa em que morei com meus pais, na praia. Nunca mais eu tinha ido, Irene não gostava de mar. Eu sonhava com barcos,  areia,  água,  nuvens,  vento fresco. Eu me imaginava contornando uma ilha. Uma vez, no sonho, anoiteceu e dormi nas pedras, não conseguia voltar. Naquele dia tive medo. No sonho, tive medo. Comecei a ter muita vontade de visitar aquela ilha. E pensava em minha namorada, com quem eu poderia ter me casado se não tivesse entrado na faculdade de medicina. Eu teria uma pequena loja de pranchas de surf. Eu não surfava, mas fazia pranchas muito bem. Meus filhos nunca souberam de nada disso. Para eles minha vida começou com Irene.

Mas teve tanta coisa antes.

Fiquei obcecado por retomar o passado. Quis voltar àquele luau em que minhas amigas dançavam vestidas de havaianas no meio de pranchas de surf.

Ontem, no meu aniversário de  70 anos,  fomos jantar, meus dois filhos e eu. Só nós três. Escolhi um restaurante muito bom e paguei a conta, coisa que não fazia desde que eles começaram a trabalhar. Sugeriram um jantar com toda a família, talvez na casa de meu filho, que é maior. Mas eu tinha  uma comunicação a fazer. Uma comunicação familiar. Para ser sincero, nos sentimos um pouco estranhos, nós três, no restaurante. Como se estivéssemos fazendo um favor uns aos outros.

-Essa semana começarei a fechar o consultório.

Os dois não trabalham comigo. Eles me consideram ultrapassado, mas nunca se  surpreendem quando eu acerto um diagnóstico. Confiança. Um pai nunca erra. Quando me consultam, eu geralmente dou boas pistas. Mas aí se afastam. Acho que meus filhos têm medo de mim.

-Vocês tomam um vinho comigo?

Vanda tinha cirurgia no dia seguinte, não podia beber. João Pedro aceitou. Ela perguntou se poderia ir embora depois do jantar e eu disse claro. Ninguém era obrigado a ficar com o pai. Ainda mais em véspera de cirurgia. Você sempre faz drama, ela disse.

João Pedro  estava  tranquilo, os otorrinos são sempre tranquilos. Clínicos também. Nisso meu filho puxou a mim, na tranquilidade.

-E que você vai fazer, pai?

-Primeiro vou dar meu cachorro a um de vocês. Podem compartilhar. Uma semana com um, outra com outro.

Nenhum se pronunciou (nenhum dos dois gostava de meu melhor amigo. ciúmes?).

– Depois darei todas as minhas coisas. Peço que vocês visitem nossa casa e peguem tudo o que quiserem na próxima semana.

-Tudo?

-Tudo, Vanda. Vou vender a casa. Sei que vocês têm a parte da sua mãe. A casa é grande, o lugar é bom, vendo rápido. Até tem gente interessada.

Ele  não se conteve:

-Que bom,  quero reformar meu consultório.

-Mas pai, eu quero morar lá em casa um dia.

Nunca pensei que Vanda quisesse morar em casa.

-Não, compra um apartamento novo pra você, que tenha a sua cara. Meus filhos, não sei se depois disso nos veremos.

Vanda até colocou um pouco de vinho na taça.

-Você vai se matar?

-Sem Irene sou um médico pior, uma pessoa pior. Mas fiz um juramento de cuidar de todos e isso me inclui. Não vou me matar. Nunca mais abrirei um compêndio de medicina, não pegarei em um estetoscópio, não assinarei uma receita de antibióticos.

-E que você vai fazer, pai? Um dos dois perguntou, ou os dois, fiquei confuso.

-Vou morar na minha cidade. Eu tive uma namorada lá, sabem? A gente se gostava muito. Mas meu pai não me deixou casar. Quis que eu viesse para cá estudar. Acho que ela está por lá. Se não estiver, ficarei esperando, ela vai voltar. Faz pouco tempo eu me lembro que prometemos essa volta um ao outro. Eu tinha me esquecido, mas agora me lembrei.

Os dois ficaram  com jeito de traídos. Meus filhos de mais de 30 anos como crianças na minha frente. A traição é sempre muito relativa e eu estava bem comigo. Sempre fui fiel a Irene. Ela, acho que não. Me lembro de um período em que desconfiei do amor de Irene. Ela estava distante, aérea. Esperei e depois de um ano ela voltou a nós dois. Mas isso é o passado e eu procurava o passado do passado, o passado perfeito, ou mais que perfeito.

-Quem fica com o cachorro?