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Nove tiros em Chef Lidu (início do romance policial que escrevi, ainda não publicado)

31 de maio de 2014

Você deve ter ouvido falar de Chef Lidu. Aquele da Brasserie Lidu. Cozinha francesa. Também consta que pesquisava gastronomia molecular. Caviar de abóbora. Gelatina quente.

O restaurante ficava nos Jardins, em São Paulo. Perto da Rua Augusta.

Acabou. A mulher do Chef,  Darlene, ainda tentou manter um tempo,  não conseguiu. Ele tinha estilo, só ele tinha estilo. Conhecia os detalhes todos. Podia servir arroz com feijão e os clientes pediam mais. Claro que ele não servia arroz e feijão. Servia  le coq au vin. Poulet frites. French fries.

Chef Lidu estudava gastronomia para, quem sabe, mudar alguma coisa no restô. Ou mudar tudo. Ele tinha dúvidas.

Alguma transformação já começava, devagar, como a contratação do cozinheiro espanhol, por exemplo. Discípulo de Ferran Adrià (depois se descobriu que era mentira).

Chef Lidu pensava até em formigas no cardápio.

Chef Lidu era inquieto. Disseram também que gostava (pessoalmente) de uma boa macarronada. Era o que comia à noite, quando chegava em casa (se bem que seus hábitos estivessem mudando). Isso antes de Monalisa. Depois de Monalisa,  mudou o regime alimentar. Aí, só sopa de tomates.

Hábitos alimentares de um chefe de cozinha assassinado nunca interessaram tanto os curiosos. A imprensa explorou esse aspecto da história toda.

Viagem sentimental entre Huaca Pucclana, Asfalto e Japão

5 de maio de 2014

pirâmide

No sítio arqueológico Huaca Pucclana, no meio da cidade de Lima, no Peru, há construções de adobe, material que é mistura de terra, palha e água. A partir dessa mistura, a civilização anterior aos incas moldava tijolos de idêntico tamanho e com eles formava pirâmides (recheadas de pedras, também). Huaca Pucclana era um espaço para jogos e reuniões religiosas e políticas. As pessoas não moravam lá.

O homem registra ideias, preocupações, sentimentos e rotinas segundo conhecimentos e possibilidades de cada época. Sempre que visito lugares assim antigos, penso no imenso trabalho de reconstrução narrativa de arqueólogos e historiadores. Escavações em Huaca Pucclana trouxeram à tona pirâmide, praças, escadas de adobe em perfeito estado.

Creio que, não à toa, adobe é, também, o nome de empresa que, atualmente, programa registros digitais de dados. O nome adobe é associado, hoje, à construção digital.

Sendo eu uma pessoa ligada à escrita e à documentação, sendo ainda escritora, tendo publicado, em ficção, um romance (Viagem sentimental ao Japão, Apicuri, 2013) e um livro de contos (Asfalto, e-galáxia, 2014), o último em formato exclusivamente digital, é natural que reflita sobre o que é mais gratificante ou duradouro: o livro em papel ou o e-book?

tijolos

Imagino, então, bibliotecas antiquíssimas, talvez aquelas dos monges, em que exemplares únicos eram copiados à mão e guardados, arquivados, mantidos assim até hoje, em ambientes climatizados e algumas vezes sem possibilidade alguma de manuseio. Penso nesses livros enfileirados como os tijolos de adobe.

Penso em meu livro de contos, curiosamente denominado Asfalto, digitalizado, quase infinito. Não importa quantas pessoas o procurem, estará sempre à disposição – desde que mantidos pelas livrarias digitais cada vez mais fortes.

asfalto

Imagino, para o Viagem sentimental ao Japão, bibliotecas físicas bacanas, estantes de leitores interessados, mesmo que da Estante Virtual. Imagino o livro guardado em mochilas, o livro emprestado, comentado, lido. Imagino alguém que se divirta com as viagens de Anette, que se identifique com Anette.

Capa_Baixa

Para Asfalto, imagino vida larga, multiplicada, infinita como o número matemático Pi: 3,14141592653589… Sonhei, aliás, outro dia, com esses números enfileirados, grafados em uma parede de pedra, infinitamente.

Asfalto tem dez contos. Um deles fala de um GPS, outro de um quimono, outro de uma mulher com agenda lotada, outro de uma motociclista atarefada, outro de um rapaz que usa o primeiro smoking em um baile de formatura, outro sobre uma moça em dieta de emagrecimento, outro sobre uma vidente, outro sobre um jornalista e uma escritora em entrevista, outro sobre um depoimento em uma delegacia. São tantos assuntos, o livro é tão curto e tão longo.

Há quem ainda recuse a leitura digital, quem ache que o livro digital não é tão livro como o impresso. Cada leitor é um leitor, cada leitura é uma leitura.

As civilizações mais antigas comunicaram-se e comunicam-se com a nossa de diversas maneiras e nos cabe, também, aceitar nossas formas contemporâneas de expressão. Posso comparar bibliotecas de livros impressos às pirâmides de tijolos adobe, assim como posso comparar livros digitais aos mesmos tijolos.

Aprende-se a falar e escrever sem a ajuda de computadores, mas, depois, não se vive sem eles, não se vive sem o registro digital, fora do sistema. Até se vive. Mas é necessário e divertido tentar pegar a nova onda e encontrar ouvintes, leitores, conexões.

Quem sabe um dia, em um futuro distante, um ser humano altamente especializado decifre, depois de muito esforço, os dez contos de Asfalto e, então, espalhe o conhecimento de que houve, em um passado remoto, um GPS, uma motocicleta, um quimono, uma vidente e um smoking apertado.