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A carta de Glória

4 de junho de 2015

Este conto está publicado, com pouquíssimas variações, no fanzine “50 anos daquele 64”, do Coletivo Literário Martelinho de Ouro (em e-book nas plataformas digitais)

Glória, de intensa beleza.

Filha única. Criada com mamão com açúcar, farinha láctea e em colégio de freiras. Balé. Sempre gostou de português, literatura e história.

Em 75, completando 20 anos, estudante de direito, participava de grupos de leitura e estudos, todos secretos. Lia textos censurados. Rasga Coração, de Oduvaldo Vianna Filho.

Os pais desconfiaram. Aquilo não ia dar certo. As pessoas que expressavam opiniões contrárias ao regime estavam sendo presas. Disseram e avisaram mil vezes.

A mãe implorou: sai disso.

Mas não se pode nem ler?

O pai era professor de matemática. A justiça dele era a dos números, representada pelo sinal de igual. Glória logo percebeu que, na vida, nada era igual. O pai sabia contar e os resultados de qualquer operação eram sempre negativos. Até mesmo pra ele, um homem triste.

Glória lia porque o mundo era quente e seco ao redor. Ela queria ar.

Não se conformou quando Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, foi censurado. Em 76, proibiram até Romeu e Julieta, do grupo do teatro Bolshoi, na TV. Proibiram Shakespeare.

Como alguém pode proibir Shakespeare?

Mataram Wladimir Herzog e ela foi ao ato ecumênico na Praça da Sé. Não conseguiu entrar na catedral. Ficou fora, mas cantou Caminhando e cantando, de Vandré.

Chegando em casa, encontrou a mãe chorando. Aquilo tinha que terminar. Por que ela não viajava um pouco? Podia ir à França.

Brasil, ame-o ou deixe-o? Tinha dúvidas.

Gostava de ouvir O que será que será (nas três versões).

À noite, no quarto, lia textos que circulavam, manifestos mimeografados.

De manhã, ia para a faculdade. Os professores de direito não falavam sobre ditadura. No máximo, discursavam sobre as várias acepções da palavra liberdade, como se liberdade fosse um conceito abstrato. A liberdade era um conceito real, físico, ela achava.

Ia largar a faculdade. Queria ser atriz. Só não tinha voz.

Redigia manifestos, mas não distribuía. Tinha vergonha. Escrevia que a abertura lenta, gradual e segura, anunciada pelo presidente, era uma mentira. Parecia ser uma mentira.

Enquanto isso, em casa, a mãe assistia à novela Anjo Mau e o pai corrigia equações. Eles quase não conversavam e só tinham uma opinião em comum: a de que Glória devia ir para a Europa.

Foi em 76, em uma manhã de outubro, uma manhã qualquer, que Glória saiu cedo com a pasta que carregava todos os dias, uma pasta marrom. Naquele dia, a pasta tinha um documento diferente: uma carta escrita pelo irmão de uma vizinha do prédio. Ele estava preso e tinha sido torturado por um mês, quase todos os dias. Passou a carta à família por um companheiro solto. A vizinha achou que podia dar uma cópia da carta à Glória. Achou que ela estudava direito e faria alguma coisa com aquela carta. Pela primeira vez alguém lhe deu uma função assim importante.

Leu o texto manuscrito. Nunca tinha lido um relato tão detalhado do sofrimento. Embora lesse muito, não sabia que a dor podia ser expressa em palavras. Nunca tinha lido nada assim. O corpo de Glória sentiu açoites e perfurações, o corpo parou de respirar por alguns momentos. Ainda não sabia o que fazer com a carta porque afinal não estava tão envolvida na luta contra a repressão. Não conhecia caminhos e pessoas que pudessem levar a carta adiante. Ela só participava de grupos de estudos. E de leitura.

Aquela carta não era um panfleto, um documento, um poema, uma análise, um refrão, um conto.
Era um depoimento, um testemunho, um S.O.S., um pedido de providências, um grito, uma explosão.

Pensava nisso ao sair de casa: no que fazer com a bomba.

Pegou o ônibus e sentou-se na primeira fila. Um homem grande chegou perto e ficou de pé ao lado dela, embora houvesse lugares vazios no ônibus. Ela achou que já o tinha visto antes. Tocando a campainha da vizinha? Amigo do pai da vizinha? O dia em que ela desceu de escadas porque o elevador estava quebrado ele subia? Impressão. Era um estranho. Mas o estranho prestou atenção na pasta que estava no seu colo. Ela agarrou a pasta com força, os dedos de Glória apertaram aquela pasta marrom. O homem de barba olhava a pasta. Ele usava óculos escuros. Vestia uma camisa comum, um pouco aberta, ela olhou para cima e viu os pelos pretos do peito dele aparecendo, saltando. Ela começou a transpirar, sentiu a blusa molhar na região das axilas. Pensou nessa palavra, axilas, e riu do pensamento idiota. Axilas. Aí ela lembrou dos relatórios e das descrições de tortura que tinha lido. Aquele homem ao lado dela não tinha encostado um dedo no seu ombro e ela imaginava choques elétricos em seu corpo, em partes que ela não conseguia nominar em pensamento.

Glória pressentiu que aquele homem era da repressão. Ou ela estava perseguida, ou ele suspeitava da pasta, ou os dedos apertados e o suor delatavam seu medo, alguma coisa estava deslocada, ali. Fora do compasso. Ou não.

A saída foi fazer cálculos. Quando estava muito nervosa, recorria aos cálculos. Faltavam 15 minutos para chegar à faculdade e em 12 minutos o ônibus estaria no Viaduto do Chá e ela precisava de 1 minuto para chegar à porta do ônibus quando ele parasse no sinal fechado e não daria tempo, o homem desceria atrás dela. Que cálculo o pai faria naquele momento? Como a matemática a salvaria daquele terror e quando ela poderia assistir Romeu e Julieta na TV?

Glória nem pensou em rezar porque não acreditava em Deus. Mas recorreu aos números e zero era uma saída possível, na maioria das vezes. Zero e nada. Zero como o livro censurado de Loyola. Zero e vazio e ausência e silêncio e medo.

Glória ficou ali, zerada. O ponto da faculdade chegou e ela não desceu. Quando as coisas estavam complicadas, o melhor era não fazer nada. Parou de pensar e de ver e de sentir e os dedos relaxaram de tal maneira que a pasta marrom caiu no chão. Ela olhou e nem pensou em pegar, ia deixar a pasta ali. Aí o homem, ainda parado, – ele não desistia – abaixou-se, pegou a pasta e disse:

-É sua?

Quase disse não. Seria pior. Ele ficaria com a pasta e leria a carta. Confirmou e pegou a pasta marrom. Agradeceu com a cabeça. Ele deve ter sentido o cheiro do medo. Mas, quando o ônibus parou, ele desceu. O homem deu uma oportunidade a Glória.

Ela ficou ali ainda um tempo, sentada, respirando, comemorando a sorte, agradecendo os cálculos. Desceu no ponto seguinte, atravessou a rua e pegou o ônibus da volta. Iria para a faculdade de qualquer jeito.

Chegando à faculdade, Glória viu o homem barbudo, de pé. Gelou e, em vez de virar de costas, disfarçar, correr, continuou, firme. Não fez mais cálculos. A equação tinha terminado. Entrou na faculdade, passou pelo homem, segurando a pasta contra o peito. Esperava uma segunda chance.

E ouviu aquela voz:

-Senhorita, queira me acompanhar, por favor.