Quase sempre a história começa devagar, pega fôlego, se apressa e chega ao fim. Gostaria de se demorar um pouco mais no meio do caminho, mas é como se descesse a ladeira, não consegue brecar.
Suas histórias terminam razoavelmente bem. São esperançosas, mostram uma luz no fim do túnel-como se diz por aí.
Para ele, qualquer fim de frase, falada ou escrita, cantada, é uma vitória.
As frases escritas são rápidas, percorrem a ideia sem obstáculos.
E ele, ainda por cima, consegue viver de literatura.
Escreve um livro por ano. Publica um livro por ano.
Tem sido chamado para entrevistas, debates. Recusa todos por um simples motivo: é gago.
É um sujeito bem apessoado -dizem por aí. Mas gago.
Então se esconde na escrita e se realiza na escrita. Tem horror a que conheçam sua fraqueza. Em suas narrativas é soberano, dono, regente, mestre, condutor, comandante, general.
Nunca autografa seus livros. Não aparece. Dizem por aí que é um sujeito misterioso, um eremita. Não é nada disso. Ele só é gago.
Mora sozinho em um apartamento. Acorda de manhã, faz café de coador, come cereais com frutas, lê o jornal e escreve até anoitecer. Almoça muito frugalmente, um sandwich. Por isso é tão magro.
À noite pede uma pizza, um sushi; pede pelo telefone. Nessa hora toma uma cerveja. Às vezes duas cervejas. E liga a televisão, assiste um monte de bobagens.
Não faz exercícios.
Quando o telefone toca, a secretária eletrônica atende. Depois ele retorna, se for importante.
Atualmente, escreve um romance sobre um paciente terminal, um homem que teve um derrame e parou de se comunicar. A narradora é a mulher desse homem. Ela conta em detalhes os dias dele no hospital. Conta seus pensamentos, suas angústias, e, principalmente, seu tédio. O tédio de quem acompanha um doente por longo tempo no hospital e espera que ele morra, querendo, no entanto, que se recupere.
Ele gosta desse livro que escreve. Gosta demais. Gosta tanto que não quer terminar. Quer deixar como uma frase não concluída, uma ideia gaguejada.
Tem uma filha, que mora com a mãe, uma ex-quase-mulher. Grande figura (mas não foi o bastante). Parou no meio do caminho. Com ela – com a filha – ele não é gago. Ou gagueja muito pouco. Às vezes.
Ele detesta Natal, e agora é época de Natal. Por isso está nervoso, inquieto. Gostaria de dar algum frescor na vida dele, mas é impossível. É meu personagem mais relutante, verdadeiro. Ele vive em um mundo só dele, geralmente escuro. Já quis fazer com que ele levasse a vida de um jeito mais leve, só que ele não tem energia para mudar.
Ele não tem depressão. Ele é gago, só isso, como o personagem de Mishima em O Pavilhão Dourado. Aquele personagem sofre.
Ele não se identifica nem um pouco com o personagem de Mishima. Com Mishima, talvez um pouco. Mas nunca morreria como ele morreu, não faria um general de refém e não cometeria haraquiri em seguida, para ser decapitado por um sabre empunhado por um jovem que o venerava.
Uma coisa é ser gago em 1945 no Japão, outra é ser gago em 2011 em São Paulo, no Brasil: situações bem diferentes.
Não, ele ainda controla seus impulsos e tem limites. Se não fosse gago, seria um publicitário bem sucedido, estaria aí ganhando dinheiro com campanhas de carros e cigarros, morando em um condomínio fechado e seguro. Agora ele é escritor.
No dia 20 de dezembro , sai para comprar o presente de Natal da filha. Sai cedo de casa, modificando totalmente sua rotina. Fica nervoso com isso.
Vai até uma loja de eletrônicos bastante frequentada. Estaciona o carro, caminha até a loja, lotada. Ele está atordoado. Perdido no meio de games, computadores, músicas, telas. Anda por ali procurando ajuda, mas ninguém o socorre. Pensa em chamar um vendedor, retrocede. Vai gaguejar e não terão paciência com ele. Ou o olharão com pena. As pessoas, quando vendem e compram, ficam muito ansiosas. Ele deveria ter comprado pela internet, agora não dá tempo.
Escolhe o equipamento. Olha para o vendedor que, por uma coincidência extrema, está olhando pra ele naquele exato instante.
-E e e u que que quero le le var esse.
O vendedor não hesita. Vai para a caixa formalizar o documento de venda. Ele o acompanha, mais calmo. Dali será tudo mais fácil: levar o papel à caixa do segundo andar, pagar, pegar o computador no balcão, acompanhado da nota fiscal.
Faz tudo isso mudo e, quando chega ao balcão, vê sua cantora preferida na fila. Linda, fora do palco. É difícil um homem amar muito uma cantora. Sua voz limpa e clara lhe dá esperança de que, um dia, falará em linha reta. E ela ali na frente dele dá vontade de desviar. Não quer se decepcionar. Não quer se desiludir. Quando a gente admira muito um artista e o encontra na vida real, pode se decepcionar. E, aí, o que faz com a admiração toda? Uma coisa é o que o artista produz, outra o que ele é. Duas coisas diferentes.
Mas ele não precisa se preocupar. É só ignorar a cantora, que não o conhece. Ele não é conhecido e, mesmo que fosse, ela não saberia que era sua cantora preferida.
Mas acontece algo ali, que o surpreende. Ela o encara. Ele disfarça. Ela o encara mais. Ele desvia o olhar. E ela pergunta:
-Você não é Anton Martins?
Ele nega.
-Desculpe, eu não gosto de invadir, mas você se parece muito com Anton Martins, meu escritor preferido.
Ele nega, com a cabeça, com os olhos. Chega a ser grosseiro. Melhor que ela continue com uma boa lembrança dele, a lembrança dos retratos nas orelhas dos livros, em que ele parece um escritor de best seller americano.
Ela fica muito sem graça e, tendo chegado sua vez de pegar a compra, vira-se para o balcão, para de olhá-lo. Pede desculpas de novo, com a voz limpa e cristalina que o guia nos momentos em que ele canta e deixa de ser gago, quando está sozinho.
Um pouco triste, vai para casa escrever seu livro, trabalhar na história do paciente terminal.
Tags: conto
24 de outubro de 2012 às 17:23 |
Olá Paula, quanta sensibilidade em seu conto! A gaguez do teu personagem me tocou bastante, talvez por ser gago também. Descobri Mishima por acaso, ao ler um livro de Serge André, que, por sua vez, tive conhecimento em leituras feitas por associação com outras que vinha fazendo. Desde que comecei a ler o Pavilhão Dourado, tenho me interessado cada vez mais por Mishima e sua tradução peculiar do mundo. Se você tiver mais reflexões como essas, por favor, me envie. Ficarei bastante agradecido. Um abraço.
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24 de outubro de 2012 às 22:23 |
Obrigada, Othon, que legal ler sua mensagem! Li, de Mishima, Confissões de uma máscara, relato autobiográfico. É muito bom, também. Um abraço, Paula
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