Falando outras línguas, pensando em português

Quando se aprende uma língua, chega-se perto da gramática da própria língua e das infinitas possibilidades do escrever. Olhar para o modo de falar do outro, do estrangeiro, faz com que se pense a própria articulação de ideias de um outro jeito. Hoje estudo espanhol, mas já estudei inglês e alemão e, de todas as línguas, a alemã é a mais sistematizada e previsível, embora a qualquer momento possa desequilibrar-se. E a língua portuguesa?
Uso a língua portuguesa para lembrar dos navios no mar de Santos, apitando enquanto esperavam hora de entrar no porto. Imaginava o que havia nos navios e supunha que transportavam coisas importantes. Admirava-os por isso, por estarem perto do sol que dormia no mar.
Uso a língua portuguesa para me lembrar dos tempos em que comprava discos de vinil na Musical Box, em Higienópolis, perto da Faap. Comprava um ou dois por semana e lá comprei Smiths, A flock of seaguls, Lou Reed e muitos outros. Eles entendiam de música ali e eram tão sérios, quase nunca sorriam. Mas e a música? Na Deputado Lacerda Franco tinha o Edgard, comprei alguns discos lá, vinham em um plástico bem grosso, uma senhora ficava sentada perto da porta e nós escolhíamos. Comprei Luiz Melodia ali. Uso a língua portuguesa para me lembrar da música que ouvi e ouço.
Estou lendo Claudio Willer, poeta, mas em prosa. O livro é “Volta” (Iluminuras). Ele conta coisas, ali, e fala do mar. O mar. Gosto desse poeta, ele é tão sério em sua poesia, usa a língua portuguesa para que eu quase chore qundo ele fala do Guarujá e da praia de Pernambuco, onde já estive muitas vezes e para onde não sei se voltarei.
Como podemos ir sempre a um lugar e depois não ir mais? O lugar deixa de nos pertencer com a nossa ausência. E fico pensando se um dia minha casa não será mais minha, e se a Avenida Paulista chegará a ser um lugar distante. Gosto de lá porque é e não é, está e não está, a avenida é mutante, escorregadia, flutuante, impaciente. Quando ando na avenida Paulista, estou e não estou, existo e não existo, meu pensamento voa a ponto de eu cumprimentar as pessoas com tchau e não com oi. Fico aérea, confusa, sou aérea e confusa.
Uso a língua portuguesa para aprender as outras e desejo muito, ao falar outras línguas, ser também outra pessoa e, ao mesmo tempo, pensar melhor em português.

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