Eu me lembro de detalhes da casa da minha avó, me lembro até do som do elevador que subia até o 7º andar de um edifício sem garagem que ficava no meio da Rua Ângelo Guerra, em Santos. Da janela se via o mar.
Atrás da porta estava uma estante baixa de livros e eu me lembro até da ordem dos livros nas prateleiras. Ela tinha uma coleção enorme de livros que contavam a vida de uma certa Angélica. Angélica e o rei, Angélica e não sei mais quem. Tenho todos esses livros guardados na parte de cima do guarda-roupa. Nunca abro, mas eles não saem de lá, quero que conservem o cheiro da casa da minha avó. Fui a herdeira dos livros da minha avó. Romances de A.J. Cronin, Érico Veríssimo, Somerset Maugham, Pearl Buck. Li quase todos os livros de Pearl Buck e já tive o sonho de conhecer a China. Esses foram os meus livros. Que eram dela. Eu não me lembro de levá-los pra casa, acho que lia lá, mesmo, na casa da minha avó.
Ela tinha uns sofás que viravam cama na sala, o tecido era gostoso, quente. E uma mesa de centro retangular de vidro entre eles. E um quadro enorme, mais de 1 metro quadrado, com uma floresta densa e escura, incrível como aquele quadro era grande e poderoso, ainda bem que não ficou pra mim. Eu queria um quadrinho pequeno que ficava no corredor, uma casa de campo no final de uma estrada em curvas. Mas não me foi dado.
E o banheiro tinha um cheiro especial, de sabonete. O box era de plástico e a gente tomava banho e o chuveirinho escapava toda hora da mangueira. Na geladeira sempre tinha coca-cola, meu avô comprava para o mês inteiro e a gente podia tomar quando quisesse. Tinha uva, quando era época, e figo. E torta de frango. E na sexta-feira santa tinha bacalhau e ela espirrava um pouco de água benta para abençoar antes do almoço, e falava algumas palavras carinhosas e bem humoradas. Nada para a minha avó era pesado, nem as palavras mais santas. Só quando ela ficava aflita era chato, ela se preocupava sempre, nunca se acostumou com a fatalidade da vida. Ela dizia que aceitava a vontade de Deus, mas eu sinceramente duvido, ela nunca aceitou.
Quando ventava em Santos, quando ventava muito e as esquadrias das janelas batiam, minha avó ficava muito nervosa. A gente precisava colocar um calço para as janelas ficarem quietas. Eu lembro ela falando essa palavra, calço.
E a agenda de telefone ficava em uma mesinha pequena e a gente sentava no banco baixo pra falar no telefone. Tenho saudades das mãos da minha avó manuseando aquela agenda, procurando devagar os números de telefone, folheando com seus dedos e unhas bem feitas e bem pintadas. Minha avó usou a vida toda um mesmo esmalte, uma mesma cor, rosa pálido, o nome era fog. A manicure ia lá todas as semanas, foi durante anos, era bem mau humorada aquela manicure. Mas até dela eu tenho saudades, da Maria José. E da Carmelita. E da minha avó.
Tags: conto; memória
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