Sobre Birdman, Raymond Carver e o sentido da ficção

Birdman, filme de Alejandro González Iñárritu,  incomoda. Quando terminou, fiquei com uma sensação estranha, de que tinha gostado, mas não tinha, ao mesmo tempo.

Não saí  feliz do cinema e podem dizer que não é esse o objetivo do cinema, o de deixar feliz, mas gosto de sair leve do cinema. E saí pesada, com um nó.

Li um texto na Carta Capital (http://goo.gl/Iqk2Sj) de Matheus Pichonelli, em que fala que Birdman é o drama de todos nós. Meu, certamente, é.

Vou transcrever aqui uma parte do texto: “Nessa interseção, Iñarritu mostra que os caminhos do sucesso e do prestigio são só aparentemente distintos ou anuláveis. Thomson quer se ver livre da máscara que lhe deu a fama. Quer provar que não é, ou não foi, apenas um rostinho bonito (e coberto) a serviço da indústria do entretenimento. Pena, no entanto, para se dissociar da velha imagem e encontrar a própria identidade. Seu personagem na franquia de super-heróis, afinal, era amado. E era amado porque levava o público a uma fantasia perfeita montada sobre maniqueísmos e efeitos especiais. Mas a arte não é entretenimento, insiste o personagem-ator. Arte é questionamento. É provocação. É precisão. É atuação na medida exata, portanto. Daí a obsessão em levar à Broadway uma peça adaptada a partir de um texto de Raymond Carver, dramaturgo que, anos antes, incentivou o protagonista a se transformar em ator – graças a um elogio escrito a mão em um guardanapo de papel. É o primeiro de três papeis literais, vulneráveis e simbólicos, do filme”.

O filme fala de literatura (Raymond Carver é um escritor referência para a literatura  contemporânea),  teatro/ representação (quem é o ator no palco, ele mesmo ou o outro?),  crítica (toda crítica parte de rótulos já definidos?), popularidade, internet, maturidade, juventude, envelhecimento. Quando termino de escrever  um texto de ficção, me assusto e pergunto, como fui escrever isso? Que sentido tem essa história? Qual a verossimilhança? É necessária a verossimilhança? No filme, o ator  (interpretado por Michael Keaton) foi famoso ao representar  Birdman, o homem pássaro que voava, herói que encantava as pessoas. Os homens não voam e que sentido tinha Birdman? Tinha todo o sentido e continuou a ter no decorrer dos anos, sentido não superado pelo novo personagem por ele interpretado na peça escrita por Raymond Carver, “What do we talk when we talk about love”.

Fiquei pensando no que levou Iñárritu a escolher Raymond Carver para a peça ensaiada no filme. Vemos só umas duas cenas dessa peça, no máximo três, sempre as mesmas, representadas em momentos diferentes. Por isso o filme incomoda, porque ele não termina (para mim). Saio e preciso ler Carver para compreender totalmente.

E encontro, no livro publicado pela Companhia das Letras, “68 contos de Raymond Carver”, o título que antecede uma série de contos, “Do que estamos falando quando falamos de amor”. E há um conto com esse nome e abro o livro na página 369 e ali estão os personagens da peça representada  no filme. Ali está a cozinha que aparece no filme.

Agora preciso ver o filme de novo para ver se os personagens são, de fato, os mesmos. Preciso ver de novo para prestar atenção em alguns diálogos que na hora não tiveram importância mas que agora podem fazer sentido. O filme criou uma peça que recriou um conto e preciso ver tudo de novo. Tudo se transforma.

E me pergunto qual o sentido da  ficção que escrevo e a resposta agora me parece óbvia: nenhum. O que vale é o esforço, a coragem de publicar essa ficção. Tem um momento em que o personagem diz que a peça pode ser ruim, mas o diretor se expõe e é o que importa.

Acho que esse é o sentido do filme, para mim. Mesmo que meu texto seja engraçado ou irônico ou sarcástico (dependendo do ponto de vista) demais, ou ingênuo, ou corajoso, é o texto que escrevo. O ideal, penso, é que seja lido por pessoas que não conheço e não me conhecem, para que seja lido no seu contexto próprio e específico, sem rótulos pessoais.

A realidade nunca está na ficção. O texto de ficção, o romance, quando finalmente surge,  já triturou tudo.

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3 Respostas to “Sobre Birdman, Raymond Carver e o sentido da ficção”

  1. Izilda Bichara Says:

    Não vi o filme, nem conheço esse conto específico de Carver, mas seus comentários me deixaram muito curiosa para ver um e outro. E mais serviram-me como boa reflexão, especialmente o parágrafo final. Parabéns!

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  2. Nina Says:

    Paula, não acredito que ainda não tinha vindo aqui. Hoje, ao receber o seu livro, vejo na sua biografia a existência de um blog e cá estou eu. Ainda não assisti “Birdman”, mas ao ler o seu riquíssimo post fiquei com vontade de fazê-lo bem como ler o livro “68 contos de Raymond Carver”. “Tudo se transforma”, não é?! Fiquei com vontade de ter meus sentimentos remexidos também.

    Beijos,
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